Ensaio sobre a cegueira | José Saramago

Escrito por Andressa Santiago - julho 13, 2021

"Ainda que nossos olhos estejam sãos, quão cegas estão nossas almas?" — Muriel Cristina Vieira


Em Ensaio sobre a cegueira, José Saramago discorre sobre uma epidemia de cegueira branca contagiosa que se espalha por uma cidade abalando as estruturas sociais. 


Tudo começa quando, ao primeiro comando do semáforo para os carros partirem novamente num fluxo frenético, um homem mantém o seu automóvel estático, impedindo a passagem dos demais. Em meio a protestos impacientes ele alega não estar enxergando, e um transeunte se dispõe a ajudá-lo e conduzir o automóvel até sua residência. Após deixar o cego em seu apartamento, retoma seus afazeres. Entretanto, o bom samaritano se tornou um oportunista ignorante quando viu diante de seus olhos, ainda bons, a chance de levar consigo o bem de uma pessoa que, naquele cenário, se encontra incapaz de o impedir. Assim dá início a uma epidemia de cegueira branca.
 
O impacto começa nesse primeiro momento, quando somos direcionados a ponderar a capacidade humana em suas relações interpessoais: Quem roubaria o carro de um cego?
Se torna, à medida que vamos nos aprofundando na temática, implícito que a cegueira é a posteriori a todas as situações conflitantes e emergentes que os personagens estão inseridos. Aos poucos eles vão se desapossando de sua humanidade e sendo colocados a prova em diferentes aspectos sociais extremos, necessários para sobrevivência individual e coletiva.

Os cegos passaram a ser levados e coagidos pelo poder público a viverem em um prédio, antes um manicômio, pois não era sabido como havia surgido essa epidemia, logo, não se sabia o motivo e a cura. Esse se tornou um momento de caos. Cegos autoritários e com posse de uma arma, usaram do seu poder para cometer atos grotescos sobre os demais, principalmente sobre as mulheres, em troca de comida que agora estava sob seus controles. Submissão, fome, escassez, selvageria e discórdia. Era a resiliência sendo colocada à prova. Lá, o que se era não tem importância aparente, estão todos — políticos, crianças, idosos, jovens — reféns dos mesmos termos e condições sub-humanas. O ego foi reduzido a nada.


 

Mudando de cenário, passando a viverem todos como nômades transitando por ruas caóticas, agora as condições a que são submetidos ao viverem uma sociedade inteiramente cega — com exceção de uma única protagonista —, é análoga às condições negligenciadas nos telejornais e nas ruas. A esposa do médico, assim referenciada, por ser a única que ainda enxerga, direciona os demais por caminhos menos extremos ao se depararem com uma cidade devastada.

A crítica de Saramago consiste em estarmos tão habituados a ver, tanto quanto sermos bombardeados por mazelas noticiosas, que somos severamente e imperceptivelmente abatidos pelas moléstias, isto é, temos a moralidade afetada. Em outras palavras, somos incapazes de olhar interna e externamente com um olhar crítico e empático.

O ato de negligenciar a compreensão sob o outro, bem como de si, faz com que se viva uma cegueira, e todos estamos suscetíveis a isso. A cegueira branca evidencia a grande perda humana: empatia. Parte fundamental do que nos torna mais humanos.

No entanto, quando nos constrangemos com inúteis justificativas, assim como a banalidade que atribuímos à vulnerabilidade humana, social e individual, finalmente enxergamos os demais como nossos iguais, e com isso podemos nos mover para gerar transformação e sensibilizar o outro com essa mesma solidariedade, a começar por si. Através do nascimento de um novo olhar, é possível contagiar a sociedade como um todo, afinal, somos capazes de fazer o bem se a sensibilidade se tornar um hábito e andar conosco lado a lado. Em momentos de crise, somos obstinados a encarar-nos de frente, tal como somos. Precisamos exercer nossa humanidade para assim nos tornarmos humanos melhores.   

 

É recomendável que se tenha uma leitura atenta, pois o autor explora de recursos metafóricos meticulosamente pensados. A própria cegueira, os lugares e a falta de nomes nos personagens — evidenciando o distanciamento que mantemos uns aos outros.

Pode ser complexo, contudo, se você, assim como eu, gosta de refletir e repensar a sociedade, Ensaio sobre a cegueira, um clássico da literatura portuguesa, se mostra ser o caminho para essa análise contemporânea. Se trata de uma obra atemporal, pois se expressa além do tempo em que foi escrita (1995).
 
"Este é um livro francamente terrível com o qual eu quero que o leitor sofra tanto como eu sofri ao escrevê-lo. [...] Através da escrita, tentei dizer que não somos bons e que é preciso que tenhamos coragem para reconhecer isso." - Saramago 


  Título Original: Ensaio sobre a cegueira
  Autor: José Saramago
  Gênero: Distopia/Ficção/Literatura Estrangeira/Romance
  Páginas: 312
  Edição: 2ª Edição
  Editora:  Companhia das Letras
  Publicação: 1995 (Essa edição: 2017)
  ISBN:  9788535930313
  Minha avaliação: ★★★★★

Sinopse:
Uma terrível "treva branca" vai deixando cegos, um a um, os habitantes de uma cidade. Com essa fantasia aterradora, Saramago nos obriga fechar os olhos e ver. Recuperar a lucidez, resgatar o afeto: essas são as tarefas do escritor e de cada leitor, diante da pressão dos tempos e do que se perdeu.

Um motorista parado no sinal se descobre subitamente cego. É o primeiro caso de uma "treva branca" que logo se espalha incontrolavelmente. Resguardados em quarentena, os cegos se perceberão reduzidos à essência humana, numa verdadeira viagem às trevas.

Ensaio sobre a cegueira é a fantasia de um autor que nos faz lembrar "a responsabilidade de ter olhos quando os outros os perderam". José Saramago nos dá, aqui, uma imagem aterradora e comovente de tempos sombrios, à beira de um novo milênio, impondo-se à companhia dos maiores visionários modernos, como Franz Kafka e Elias Canetti. Cada leitor viverá uma experiência imaginativa única. Num ponto onde se cruzam literatura e sabedoria, José Saramago nos obriga a parar, fechar os olhos e ver. Recuperar a lucidez, resgatar o afeto: essas são as tarefas do escritor e de cada leitor, diante da pressão dos tempos e do que se perdeu:"uma coisa que não tem nome, essa coisa é o que somos".

"Sim, o Ensaio sobre a cegueira é um livro para se ler neste momento de reclusão e confinamento do coronavírus. Mas não para pensar sobre como uma doença que se espalha sem controle pode mudar nossa vida, mas como nossa vida talvez estivesse completamente equivocada antes que essa doença chegasse." - Renato Rovai, Revista Fórum

A caligrafia da capa é de autoria do músico e escritor Chico Buarque.

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Andressa Santiago