Entrevista: repórter Fernanda Carvalho e o jornalismo

Escrito por Andressa Santiago - abril 28, 2021


Os espaços que começamos a ocupar é resultado das lutas dos nossos ancestrais e o que lutamos hoje será um legado para as gerações futuras. Precisamos nos munir de conhecimento e determinação para estarmos preparados para romper com as barreiras do racismo, estereótipo, de gênero e classe.


Fernanda Carvalho (arquivo pessoal)
Fernanda Carvalho no estúdio da RBS TV(arquivo pessoal)
Fernanda Carvalho é a primeira e única pessoa negra que já integrou a equipe de Geral pela RBS TV em Porto Alegre, sendo assim, a primeira negra a apresentar o RBS Notícia. Com experiência há mais de 10 anos no jornalismo, conta, em entrevista para o Lê Correspondi através da rede social, como foi seu processo de formação, as dificuldades enfrentadas para se colocar no mercado de trabalho, as habilidades que desenvolveu durante sua trajetória e explica mais detalhadamente como lida com a imparcialidade percebendo o mundo enquanto mulher e negra e representando também a voz dessa mesma população, que não têm o espaço que ela ocupa hoje. A jornalista reforça que os profissionais negros precisam estar nos bastidores, pensando o jornalismo e sendo fonte, não apenas em frente a câmera.

O tempo de espera até chegar ao reconhecimento profissional, resultado do seu esforço e dedicação, segundo Fernanda, foi também um tempo de preparação, pois diz sempre ter acreditado que a porta se abriria e quando isso acontecesse seria preciso estar preparada. Na RBS TV, a jornalista vive hoje uma realização profissional, ocupando novos espaços e, com isso, mostrando que eles também nos pertencem, por mais que nos digam o contrário.

A profissional deixa ainda um conselho e um encorajamento para as futuras jornalistas, pois, embora existam dificuldades a serem superadas no jornalismo, principalmente no telejornalismo, como mulher negra será necessário rompê-la em qualquer outra profissão, e faz um chamamento. Leia a seguir a íntegra da entrevista:

Como foi o seu processo de formação em Jornalismo? (Pré-vestibular, faculdade, estágio...) 

Então, começando por como foi meu processo: na verdade eu já havia saído do Ensino Médio há um tempo e tinha feito um curso de comissária de voo. Eu peguei um período complicado na aviação no ano 2000 porque nessa época as pessoas que faziam o curso geralmente já tinham uma vaga garantida. Por este motivo, decidi prestar vestibular, mesmo estando há um tempo sem estudar as disciplinas regulares. Eu morava em Porto Alegre na época e fui prestar vestibular em Brasília, no Centro de Ensino Unificado de Brasília (UniCEUB), onde cursei, porque meu pai dava aula nessa instituição e com isso eu teria bolsa, assim como minha irmã, formada em psicologia. Então eu prestei vestibular, morando ainda em Porto Alegre e pensei, depois de fazer a prova: ‘Bah, não estou tão enferrujada assim, eu acho que se eu me esforçar, no próximo semestre consigo passar’. Mas, aconteceu de eu ter  passado neste, que foi no meio do ano de 2003, e cursei os quatro anos. Concluí em 2007. Então não cheguei a fazer pré-vestibular por conta disso. Durante a faculdade foi um processo muito clássico, digamos assim, pois fiz os quatro anos sem acréscimo. Eu queria muito voltar para Porto Alegre, por isso eu tive um pouco de pressa durante a graduação.

No quarto semestre eu fiz concurso, porque era necessário para fazer estágio na Radiobrás, assim chamada na época. Passei nesse concurso, me lembro que passei em quarto lugar, porém, como foi um processo demorado, fui chamada quase um ano depois. Esse estágio durou dois anos. Também fiz estágio na Rádio Transamérica em Brasília até o último semestre da faculdade. Foi como uma escola para mim, era uma rádio muito bacana, tínhamos chefs que nos permitiam fazer e por isso tive boas experiências. Não era aquela coisa de fazer estágio só para entregar brinde na rádio, não, eles nos deixavam produzir, inclusive apresentar os programas. Era um outro tempo, com outras regulações, então, naquele momento, isso que eu estou te falando era ótimo porque a gente realmente fez estágio para aprender a profissão na prática. Fiz somente esses dois, pois quando me formei, em junho de 2007, de fato voltei para Porto Alegre e tive que sair da Rádio Transamérica.

Revista Lê Correspondi - Entrevista Fernanda Carvalho

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Enfrentou barreiras para se colocar no mercado de trabalho? Se sim, qual, e como lidou com elas? 

Sim. As barreiras existiram porque na faculdade descobri que eu queria fazer TV, e nós sabemos, por questões estéticas, que não nos vemos nela. A TV nos diz que aquele lugar é difícil para nós alcançarmos. Somando a isso, quis voltar para Porto Alegre, onde o cenário é ainda mais discriminatório, foi realmente muito difícil. Nesse tempo, procurei fazer outras coisas, então dei aula de inglês durante muito tempo e, para exercer o jornalismo, fiz freelas em rádio e em blog.

Minha primeira experiência com o ao vivo e com TV foi de 2007 a 2011, na TVE, quando eles me convidaram para fazer a transmissão do carnaval. Fiquei um ano na expectativa de cobrir o carnaval de 2012, e assim fiz novamente. Foi ali que as portas se abriram. Essas participações do carnaval me fizeram conhecer a Vera Cardoso, a idealizadora do Nação, que me chamou para fazer o programa, que apresentei por quatro anos. Esses foram os primeiros passos para que eu chegasse onde cheguei hoje, foi bem complicado.

Quanto a como lidar com essas dificuldades: eu usei um pouquinho da nossa sensibilidade e da nossa sabedoria ancestral, das minhas crenças que me dizem que as coisas tem uma hora certa para acontecer. Eu sempre acreditei que o momento ia chegar, que essa porta ia se abrir e eu também sempre soube que eu deveria estar preparada para quando isso acontecesse.

Por acreditar, sempre estudei, nunca deixei de escrever. Eu alimentava meu blog, conhecia pessoas e apresentava o meu trabalho para elas. Não cheguei a ser aquela que batia na porta da RBS , afiliada da Globo aqui, como algumas colegas, por exemplo, que dizem: “eu entreguei o currículo para todos os diretores da Globo e um me chamou”. Não, eu nunca fiz isso, mas também não ficava parada, eu me apresentava. E de fato as coisas aconteceram como eu acreditava, depois as portas foram se abrindo e quando isso aconteceu eu estava preparada porque aquele período de espera não foi só de espera, também foi de preparação.

Sei que é difícil segurar a ansiedade, ainda mais porque nós sabemos que no nosso caso, enquanto negros, às vezes não está acontecendo não só porque nós ainda não estamos preparados. A nossa realidade é que às vezes estamos preparados e mesmo assim não acontece, mas eu sabia que se fosse acontecer, e eu sempre acreditei muito que aconteceria, eu teria que estar preparada e foi assim que eu encarei esse período de espera.

Quais foram as dificuldades e habilidades que desenvolveu para alcançar um reconhecimento profissional?

Eu usei esses momentos de dificuldade para aprender de alguma forma e, para te dar um exemplo de como eu sempre acreditei que tudo era uma preparação para este momento que estou vivendo, eu dei aulas de inglês durante muito tempo e uso ainda hoje as habilidades de me preparar mas também de saber lidar com improviso. Percebo uma semelhança, por exemplo, entre dar aula e fazer um ao vivo. Eu soube usar aquilo que eu estava fazendo, que a princípio não tinha nada a ver com jornalismo, pois sabia que aquilo ia me ser útil de alguma forma, sabe, que a vida estava me apresentando aquela oportunidade para que eu aprendesse e estivesse preparada para quando o momento chegasse. Esse é um exemplo de como as dificuldades me ajudaram a alcançar.

As habilidades, de certa forma, também estão ligadas a isso. Eu nunca fiquei parada, já que eu não tinha como me preparar fazendo o jornalismo em si. Tem muitas pessoas que hoje estão em Porto Alegre mas que começaram no interior e nós brincamos dizendo que essas pessoas são as crias da RBS. O que isso significa? Que durante a faculdade começou a fazer estágio na RBS, concluiu com 20 anos e depois de formado é efetivado, então a pessoa hoje está com 32 anos de idade e com 12 anos de RBS, entende?

Fernanda Carvalho em entrevista para Lê Correspondi
Fernanda Carvalho no estúdio da RBS TV(Arquivo pessoal)

Eu sabia que eu não tinha isso e teria que fazer essa etapa por fora. Por isso eu usava essas outras coisas que eu tinha na vida para estar preparada para quando isso acontecesse, e já te digo de antemão que, obviamente, não estava tão preparada quanto eu poderia. Eu estou há dois anos, por exemplo, na RBS e o primeiro ano foi muito difícil em relação a adaptação com a linguagem do veículo, essa dificuldade mesmo de não ter essa caminhada de quem já é da casa, e eles tem muito essa tradição de dar essa oportunidade para quem é da casa, tanto que dessa última leva que está na TV hoje, acredito que apenas eu e o Matheus Felipe, que entramos juntos inclusive, ele veio da Record e eu vim da TVE, somos os dois únicos que não temos essa caminhada toda, de pelo menos 10 anos dentro da empresa, que estamos hoje em Porto Alegre na equipe de reportagem de Geral e que não viemos do interior. E eu, para além do Matheus Felipe, tinha essa dificuldade de não vir de reportagem, porque ele pelo menos veio de reportagem, na Record. Portanto, eu tive que correr atrás dessas habilidades por fora.
Acredito que o reconhecimento acaba vindo como consequência do trabalho, sabe, eu fiz isso tudo para estar pronta mas não pelo reconhecimento em si, eu não pensei nele e, de certa forma, ele veio, inclusive, antes do esperado. Acho que a reportagem nos traz muito isso, temos esse contato na rua e as pessoas nos dão esse retorno muito direto. Saímos para fazer uma reportagem e as pessoas chegam em nós e dizem que estão gostando, dizem: “eu adoro teu trabalho, e isso e aquilo...”, mas eu te confesso que eu achei que eu ia ter que ralar mais para conseguir ouvir essas coisas que eu já ouço hoje. Então, na verdade o reconhecimento veio da junção dessas coisas todas.

Quanto tempo do seu dia é dedicado ao trabalho?

Isso é muito interessante, porque essa semana estava conversando com meu marido, dizendo que eu estou numa fase da vida em que eu vivo para trabalhar, acredito que todo mundo passa por ela e não vejo isso como um problema ou algo ruim, sabe, o meu trabalho é a coisa mais importante da minha vida, justamente porque ele me toma muito tempo. Nós trabalhamos 8 horas aqui e eu moro bem pertinho da TV, a uns 15 minutos, não preciso de muita preparação antes com deslocamento e coisas assim. Agora, durante a pandemia, tenho trabalhado 6 horas para não ficar na TV e evitar essa circulação. Trabalho de manhã, faço o jornal, e a princípio, quando chega a equipe que assume à tarde, já sou liberada. Mas, de qualquer forma, é um tempo considerável do nosso dia, é um trabalho que exige muita dedicação, muita força física até, e energia durante a pandemia com todas essas questões bastante desgastantes, mesmo que eu trabalhe 6 horas e não as 8 horas é um tempo considerável do meu dia.

E tem também a questão de que nós mudamos bastante de horário em Geral, tem semana que estou trabalhando às 5 horas da manhã porque estou no Bom dia Rio Grande, tem semana que estou um pouquinho mais tarde, 7h ou 7h30, porque estou no Jornal do Almoço, e eu também sou uma das plantonistas da bancada do Jornal da Noite. Então, por exemplo, no sábado eu estou no Jornal da Noite, vou chegar 12h para fazer o jornal às 19h. Como temos essa mudança, o trabalho é quem dita como é que vai ser a minha vida.

Agora que estamos em quarentena, faz um ano que eu particularmente não saio, realmente cumpro isso à risca, nem com reabertura, para jantar ou algo relacionado. Mas, considerando a nossa vida normal, era o meu trabalho que dizia se eu iria em algum show ou não, se eu iria em um aniversário ou não, ou se poderia ir rapidinho por ter que acordar às 4 horas para estar na TV às 5 horas. Devido a isso, é um bom tempo do meu dia, mas, mais do que um tempo, é uma energia que é dedicada. Eu tenho consciência que mais uma vez é uma dedicação necessária neste momento. Por exemplo, agora, mesmo em quarentena e estando em casa: “vamos assistir um filme? bah, se for muito tarde, não, pois eu vou dormir, amanhã eu quero estar preparada”. Então, vamos dizer que são 8 horas do dia, que é um tempo bastante grande.

Tem um(a) profissional admirado(a)? Se sim, qual e por quê?

Nossa, tem alguns que sou muito fã! Pensando na bancada, sou muito fã da Ana Paula Araújo, Maju Coutinho, às acho maravilhosas, e do César Tralli. Gosto muito da turma toda da GloboNews, como: Aline Midlej, Cecília Flash, Julia Duailibi... aprendo muito como fazer bancada, que hoje não acontece devido à pandemia, mas aprendo como fazer estúdio com eles.

Fernanda Carvalho e Maju Coutinho como referência (Arquivo pessoal)

Em reportagem, gosto muito do Marcelo Canellas e Bete Luqueze, que são aqueles repórteres raíz, da Zileide Silva, que vai para rua mesmo. Eu tenho a honra de trabalhar com alguns, tive a honra de estrear aqui na bancada com Elói Zorzetto, que faz há 35 anos o RBS Notícias. Aprendo com alguns colegas que eu admiro muito. Mas, se eu tivesse que citar três, por exemplo, seria Ana Paula Araújo, Maju Coutinho e César Tralli, que mencionei no início.

De que forma você acredita que a centralização da informação e dos autores do discurso, precariza o processo de construção da identidade da população negra?

Muito, e por vários motivos. Primeiro, se tratando de televisão, por questões estéticas mesmo, pois nós não nos vemos não só como agentes da informação, enquanto jornalistas, também não nos vemos como fonte, como cases, e é muito difícil. Aqui, inclusive, eu em conjunto com os produtores, continuamos tentando. Fiz uma agenda com profissionais negros das mais variadas profissões, para que eles sejam usados no dia a dia, porque, quando chega o dia 20 de novembro, nós achamos advogado negro, fisioterapeuta negro, médico negro, juiz negro... e essas pessoas não são fontes para além do dia 20 de novembro.

E na questão do discurso, acredito que seja ainda mais grave porque o jornalismo, na verdade, muitas vezes reforça estereótipos. Eu sempre sinto que a questão do genocídio da juventude negra não é tratado como um problema social do Brasil pelo jornalismo,  teve, acho que há uns dois ou três meses, uma matéria no Fantástico, bem grande inclusive, que falava sobre a violência policial com jovens negros, e eu fiquei abismada, eu disse: “Olha a primeira vez que eu vejo esse assunto ser tratado pelo jornalismo assim, com essa seriedade, como um problema da sociedade brasileira”, porque, se eu tenho uma sociedade tão dividida como a nossa em que mais 50% se declaram negros e vemos uma situação de violência em que uma dessas metades  tem um índice de morte por violência muito maior que o outra. Aliás, se tratando da violência contra mulher e da violência contra os jovens brancos, ela diminuiu depois de leis. Então, temos um problema social, não é um problema do negro. Tem essa questão que eu considero ser muito grave, precisa ser revista pelo jornalismo.

Quanto a identidade e autoestima, nós tivemos e ainda temos muito mais, há um tempo atrás a mídia alternativa era só o que nós tínhamos para isso, porque não só o jornalismo mas a publicidade também não nos englobava nesse sentido. Então acredito que é muito, muito complicado. Por esse motivo que eu também sempre digo que nós precisamos ter profissionais negros não só diante da tela, é muito bacana termos essa identificação imediata que acontece quando nos vemos nela, mas nós também precisamos de profissionais negros nos bastidores pensando o jornalismo, a publicidade, a mídia como um todo, porque esse discurso também precisa estar lá.

Uma de suas falas na entrevista "O jornalismo e as questões identitárias" (Sesc São Paulo,11/2018), foi que estar num lugar predominantemente ocupado por homens brancos te fez entender o que significa ser uma jornalista negra. O que na verdade tornou-se um codinome. Poderia falar mais sobre como é ser uma jornalista negra para as mulheres negras que estão pensando nessa profissão?

Que bacana, me lembro com muito carinho dessa conversa no Sesc. Na verdade eu seria muito sincera e diria: é complicado. Nós já saímos no nível mais difícil do jogo, como aquele desenho que tem uma charge que coloca a mulher negra como se fosse numa pista de corrida: o homem branco lá na frente, a mulher branca um pouco atrás, o homem negro mais adiante e a mulher negra lá atrás com todos os obstáculos possíveis, com um peso nos pés, barras para pular... é muito mais difícil, é mais difícil ainda para quem quer fazer televisão, por essas questões estéticas que eu já citei algumas vezes.

Charge Corrida da "meritocracia" (Blog Eng. Roberto Carlos Teixeira)

Mas, por outro lado, eu diria olhando olho no olho de outras mulheres negras que não é tão mais difícil que outras coisas que nós já enfrentamos, sabe, para quem nasceu mulher e preta num país como o nosso, quando a gente chega nessa idade de escolher uma profissão não é tão mais difícil como se eu tivesse escolhido ser médica, mas também não é tão mais difícil se tivesse escolhido trabalhar em uma loja no shopping porque as barreiras, na verdade, são praticamente as mesmas. O que acontece é que quem pensa esse jornalismo, como eu falei, são majoritariamente pessoas brancas e principalmente homens, e, quando nós chegamos, parece que rompemos todas aquelas barreiras que citei da pista de corrida. Ainda assim, lá dentro temos que levar esse discurso que muitas vezes essas pessoas que estão lá nunca ao menos ouviram, é muito preocupante isso, porque nós ainda temos um jornalismo pensado, pior do que um jornalismo que é esteticamente apresentado no Brasil, por pessoas brancas. Quando nós olhamos a televisão no Brasil e vamos procurar quem são os jornalistas que escrevem os grandes jornais, percebemos que são pessoas brancas, mas, para além disso, tem esse discurso que é repetido por pessoas que às vezes não tem esse contato com essa população de mulheres negras, e pior, às vezes nunca tiveram essa preocupação sabe.

Resumindo, eu diria: venham. Venham, é difícil, porém não é tão diferente de outras dificuldades que enfrentamos no mercado de trabalho como um todo, pois estamos na base desse mercado de trabalho em todas as profissões que, como eu digo, não estamos nos espaços decisórios. Espaços de poder nós temos entre o nosso povo, mas nos espaços decisórios, não. Então, há mulheres negras que escolham uma carreira política, que escolham qualquer outra profissão que não sejam aquelas que a sociedade nos delega, de trabalho braçal, do trabalho doméstico, do serviçal, que não tem nada que desabone essas profissões, mas não dá para negarmos que elas são exercidas majoritariamente por mulheres negras hoje, no Brasil, por uma herança que herdamos da escravidão. Então, seja qual for a posição que nós escolhermos, para romper isso é difícil e no jornalismo não é diferente.

Por poder ecoar as vozes de muitas que não têm o mesmo espaço, você diz que: ser imparcial, um dos critérios básicos do Jornalismo, é ser irresponsável. Com isso, como evidenciar essas vozes sem ferir a conduta da imparcialidade?

Essa questão da imparcialidade é bastante discutível, antes da pandemia, quando participamos de rodas de conversas, eu fui numa faculdade aqui e numa dessas conversas eu digo: “vou de novo dizer sobre a imparcialidade e tudo o mais”, e aí as professoras dizem: “não, aqui a gente nem ensina isso”. Eu achei maravilhoso, porque fazia muito tempo que eu não entrava na academia, não participava dessa discussão, e eu vim disso, da imparcialidade, objetividade... Por exemplo, essa imparcialidade de política e de esportiva, óbvio que precisa ter, mas quando eu digo que é ser irresponsável é porque quando falamos sobre seja o que for, falamos de um ponto de partida e eu vou falar sempre enquanto mulher e negra, vai ser a minha percepção sobre determinados assuntos e em alguns momentos precisarei colocar isso em pauta, porque, caso contrário, realmente estarei sendo irresponsável.

Fernanda Carvalho em entrevista para Lê Correspondi
Fernanda Carvalho no estúdio da RBS TV (Arquivo pessoal)

Vou te dar um exemplo: temos aqui no Rio Grande do Sul, em Porto Alegre, o Mercado Público, nele existe o Bará do Mercado, é um Orixá que os mais antigos acreditam que, quando o Mercado Público foi construído, ali foi assentado uma energia do Orixá Bará, e existe essa mística aqui na cidade. Teve um período em que eles estavam discutindo a concessão do Mercado Público que, simplificando, seria uma privatização, agora parou um pouco até por conta da pandemia, mas estava todo uma discussão em torno disso e nós participamos levando a posição do prefeito e a posição dos mercadeiros, como chamamos os donos das bancas. E um dia eu tive que dizer: “gente tem uma outra população muito importante que também está nessa luta por manter o Mercado Público público, e para quem aquele mercado também é muito importante, que é o pessoal de religião africana”, e eu te digo isso, sem nem frequentar religião africana, na verdade, tenho um conhecimento básico sobre o assunto. E aquelas pessoas alí não conheciam aquela história. Estamos falando aqui de Porto Alegre, a capital que mais tem casas de religião afro no país, mais do que Salvador. Estamos falando do Mercado Público que fica no centro da cidade e aquelas pessoas não conheciam essa história.

E como é que eu iria simplesmente me ater a imparcialidade do prefeito, dos mercadeiros, de ouvir os dois lados e não colocar alí essa voz que não chega nesse espaço onde eu estou hoje? Esse é um exemplo de como seria irresponsável se eu focasse apenas nessa imparcialidade jornalística que nos é pregado e que esse jornalismo diário de Geral acaba nos cobrando, por ser tudo muito rápido às vezes, não temos tempo de nos aprofundarmos em certas reportagens, com isso, vamos por aquele basicão mesmo, ouvimos um lado, ouvimos o outro e fechamos o VT levando isso para o público. Acho que esse é um bom exemplo de como eu preciso ser imparcial para que essas vozes que eu represento estejam realmente no meu jornalismo diário. Pois essas vozes existem e elas têm força, contudo, naquele espaço eu tenho a responsabilidade de as representar.

Você acredita que ainda hoje exista uma ideologia de "jornalistas negras(os)", como, por exemplo, estar direcionada(o) involuntariamente à projetos específico para o consumidor negro? É considerável evitá-los para fugir desse estigma, ou pode fazer desse direcionamento uma oportunidade?

Bom, essa questão me representa em dois momentos. Eu acredito que as duas coisas e, sim, existe realmente isso de que a jornalista negra e o jornalista negro estão alí para determinados papéis e que isso não seja involuntariamente, na maioria das vezes acho que isso é muito pensado, mas cabe a nós observarmos essas duas questões.

O programa Nação, por exemplo, foi uma oportunidade que aproveitei. Era um programa sobre cultura negra, sobre a contribuição negra no Rio Grande do Sul, que, obviamente, tinha que ser feito por uma jornalista ou um jornalista negro. Em algumas conversas eu mencionei sobre como isso começou a me incomodar porque sinto que nos limitam a esse papel. Eu fiz o Nação por quatro anos, e quis mostrar que eu sou, antes de tudo, jornalista. Posso fazer jornalismo esportivo, político, econômico... o que me for pedido eu tenho habilidade para fazer.

Sobre se é considerável evitá-los para fugir desse estigma: acredito que também é, em determinados momentos. Por exemplo, até então, a RBS só havia tido jornalistas negros neste papel. Tinha o Manoel Soares, que hoje está na Globo, fazia Comunidade, tinha também a Carol Anchieta, que saiu um pouco antes de mim, fazia cultura de rua mas levava muito essa questão da militância da mulher negra. Hoje eu tenho dois colegas que seguem lá que é o MarckB e o Seguidor.F, que fazem Periferia, eles não são jornalistas mas são dois comunicadores que vêm da música e tem um quadro de comunidade. Eu sempre dizia que a RBS era um espaço que só me serviria se fosse para fazer Geral, se fosse para fazer o que poderia ser feito por qualquer outro jornalista, que eu não queria estar na RBS para falar de cabelo crespo e de maquiagem para pele negra. Esses espaços não são importantes? Não é isso que estou dizendo, pelo contrário, acho que esse espaço é muito importante e ele precisa ser ocupado, entretanto, eu estava num momento da minha vida que eu não queria mais ocupá-lo, eu já tinha feito isso no Nação por quatro anos. Até certo ponto, achei que a minha missão estava cumprida. Contudo, quando atravessamos essa cerca vemos que, na verdade, continuamos tendo que levar essa nossa visão para dentro do que fazemos, como eu te falei na última pergunta, mas eu não queria fazer isso tão pontualmente, sabe.

Surgiu uma oportunidade em geral, exatamente como eu tinha pedido, então, hoje eu estou na RBS e sou a única pessoa negra, que já integrou a equipe de Geral aqui em Porto Alegre. Nós temos uma jornalista no interior, maravilhosa e talentosíssima, que ficou muito tempo fazendo Geral no Rio Grande, mas aqui em Porto Alegre eu sou a primeira e isso me levou também a, obviamente, ser a primeira a apresentar o RBS Notícias. Eu coloquei isso como meta, a vida disse "amém'' e me trouxe essa oportunidade.

Fernanda Carvalho em entrevista para Lê Correspondi
Fernanda Carvalho no estúdio da RBS TV (Arquivo pessoal)

Eu finalizo te dizendo que, seja uma oportunidade ou a outra, elas resultam em representatividade. Eu tinha a preocupação de que as pessoas não fossem se sentir representadas por agora eu não estar mais falando sobre negritude e, pelo contrário, a resposta que tenho em relação a representatividade hoje é a mesma que eu tinha quando estava no Nação e falava sobre negritude. As pessoas seguem se sentindo representadas por mim porque estou lá falando sobre diversos assuntos, não existe essa necessidade de que eu fale sobre negritude para que elas se sintam representadas. Elas entendem, hoje eu também entendi, que precisamos estar em todos os espaços, e quando alcançamos, o nosso igual que nos olha alí consegue se ver, se enxergar. Isso resume bem essa situação, as duas situações precisam ser consideradas pelo profissional negro, temos que avaliar o momento e as oportunidades. Dependendo do caso, as duas serão importantes para todos nós enquanto população negra.


Por fim, qual conselho você tem para quem está começando?

Meu conselho para quem está começando parece clichê, de certa forma é clichê, mas é: Não desista! Sabe, nós negros precisamos ter isso ainda mais forte, ainda mais consolidado, porque para nós é mais difícil, sim. Então é: Não desista e se prepare!

Infelizmente, o que minha avó falava para o meu pai e que meu pai me dizia, de que precisamos ser duas, ou mesmo três vezes melhor, é verdade. Nós não temos a mesma chance de errar como os brancos têm, nós não temos a mesma possibilidade de fazer de novo como muitos brancos têm. É triste dizer isso, é cruel, pois, não é que precisemos, não, mas a nós é cobrado que sejamos realmente duas, ou três vezes melhor, para estarmos no mesmo patamar e dividir a mesa com um branco. Então, como eu disse lá no início, se prepare. Faça inglês, leia sobre a profissão, dê sempre aquele passo a mais, isso vai fazer diferença na sua carreira, isso vai fazer diferença na hora de nós disputarmos espaços.

Precisamos estar preparados para esse mercado que realmente nos exige demais, e repito, não desista se você tem certeza no coração e na mente de que tem capacidade. Nós também precisamos lembrar que esses espaços nos pertencem, sim. Por mais que eles nos mostrem o tempo inteiro que não, esses espaços também nos pertencem e devemos acreditar que toda caminhada que foi trilhada antes de nós foi para que nós chegássemos até aqui e avançássemos nesse caminho.

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Obrigada pela participação, responderei em breve.
Andressa Santiago